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Foto do escritorMar Bahia

Mário Mukeka: "Salvador, uma cidade encantada"

*Por Mário Mukeka

No século XVII o Porto de Salvador era o de uma metrópole congestionada. A cidade era um verdadeiro dormitório. Gente de todo o canto do mundo por aqui andava, trazida pelas rotas dos ventos. A baía era uma parada obrigatória para que ia ou vinha do oriente. Nesta época, a cidade era limitada pelo Mosteiro de São Bento ao sul; o Convento do Carmo ao norte. Ao leste, uma vila escassamente povoada. A Baía de Todos os Santos era o marco oeste.


À primeira vista, Salvador parecia uma cidade pequena, mas era um mundo à parte, desdobrando-se pelos becos, vielas e ladeiras, formando um labirinto de lacaios do rei, trapaceiros de toda a sorte, ladrões e aventureiros gananciosos. Os caminhos que levavam para as partes mais ermas, como o Rio Vermelho ou o entorno da baía, eram cheios de perigos. Caminhar por essas bandas só com uma escolta armada! Enriquecer ou perder tudo era uma questão de sorte ou azar. O lacaio do rei podia dar e tomar qualquer patrimônio sem muitas explicações. Nem mesmo famílias poderosas dos engenhos estavam livres de perseguições, que sempre tinham em mente as posses e riquezas dos perseguidos.


O personagem mais exótico dessa época foi Gregório de Mattos e Guerra. Nascido em 1636, viveu 59 anos, vindo a morrer em Recife, cumprindo a condenação de ser desterrado da Bahia, pois tinha feito muitos inimigos. Ele era filho de um rico comerciante e estudou em Coimbra, formando-se em Direito. Mas na Cidade da Baía, Gregório se dedicava a foder, beber, comer e escrever sátiras que eram distribuídas clandestinamente, sendo temidas até em Portugal. Como diria Glauber Rocha, séculos depois, aqui Deus e o Diabo andavam juntos, e seu melhor amigo era o quase santo padre Antônio Vieira. Apesar da relativa inimizade entre o padre e o poeta, o primeiro muitas vezes livrou o segundo da morte e outras desgraças.


Nesta época, a terceira geração de piratas holandeses infestavam todo o litoral baiano, escondendo-se nas diversas ilhas da baía ou no arquipélago de Tinharé e Camamu, tocando o terror. A esta altura, Salvador já era uma cidade fortificada, por isso, os piratas holandeses se interessavam mais em atacá-la. Mas, havia um vasto território para além dos muros da cidade, que era alvo de cobiça. Nesta época, Salvador exportava açúcar, fumo, cravo, aguardente...No entorno da baía muitos estaleiros fabricavam embarcações de todo tamanho. Também aqui eram reparadas as naus que chegavam sempre com necessidades de consertos. Comprava-se e vendia-se muita coisa clandestinamente, pois os portos facilitavam essas negociatas.


Lingotes de ouro vindos da Índia, aqui eram transformados em joias que em Portugal não eram taxadas. Correntões em ouro, com três metros, davam várias voltas no pescoço, chegando a pesar 3 kg. Quando um galeão afundava, muita gente morria afogada por não querer se desfazer da joia. Há quem diga que o Vaticano queria transformar Salvador em um estado genuinamente católico no Atlântico Sul, por isso, inúmeras igrejas eram construídas numa cidade com tão poucas almas.


Como os mestres de obra e arquitetos tinham ligações com a Igreja, mesmo as edificações do governo ou dos ricos comerciantes tinham características cabalísticas, obedecendo uma numerologia nas suas formas e adereços. Por exemplo, as arcadas, janelas e portas eram em números múltiplos de sete: 7, 14, 21, 28...Ainda hoje, pode-se observar estes fatos, quando se olha as várias fachadas da cidade a partir do mar. Do Forte São Marcelo, se vê o Palácio do Governo com suas 28 janelas e sete arcadas na varanda. De tudo o que sobrou das estruturas que se agarram à encosta da Ladeira da Montanha, está lá com suas sete arcadas, sete janelas, sete candeeiros.


Assim, a mística de Roma, os orixás da África e a numerologia dos judeus disfarçados de novos cristãos, transformaram Salvador em uma cidade encantada. E a Baía de Todos-os-Santos é o maior espelho que Yemanjá e Oxum já receberam como presente.


* Mario Mukeka é pirata, cantor, compositor, escultor, mergulhador e dono de outros inúmeros talentos que transbordam na Baía de Todos-os-Santos. Estes e outros contos e causos são encontros no seu livro "Pirataria no Mar da Bahia." (Clique aqui e compre o seu exemplar).

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